domingo, 13 de março de 2011

Centenário de uma história inaugural

Resenha do livro "História de Sergipe", de Felisbelo Freire (1858-1916), apresentada por Francisco José Alves durante reunião de estudos do grupo Defensores do Patrimônio Cultural Sergipano no dia 13 de março de 2011. Originalmente foi publicada em: Jornal da Manhã, Aracaju, 29 dez. 1991. Arte e Palavra, nº 15, p. 6.

FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe. 2ª Ed. Petrópolis: Vozes, Aracaju: Governo do Estado de Sergipe, 1977. 416 p. (1ª Ed. 1891).


Por Francisco José Alves *

A História tem um papel fundamental na constituição da identidade de um povo. A construção de um passado comum, por meio da História, foi uma constante no processo de criação das nações ocidentais modernas. Mas não apenas as nações tiveram o seu cimento na História. Regiões e estados foram plasmados, muitas vezes, com o concurso do historiador. É bem este espírito que anima Felisbelo Freire ao escrever a sua História de Sergipe, em fins do século passado (1891). Como ele confessa, o seu objetivo é: “tornar Sergipe conhecido do País e do estrangeiro” (p. 9). Deplorando o esquecimento que teria sido vítima Sergipe na historiografia brasileira, Freire toma para si a tarefa de resgatar a História do estado, como entidade sócio-econômico e cultural singular. A trajetória do autor como militante histórico do republicanismo na então Província de Sergipe e a sua nomeação como primeiro governador republicano dão o tom do seu amor patriótico às terras Del Rey.

A História de Sergipe de F. Freire inaugura a historiografia científica do Estado. Até então tínhamos memórias e descrições. Com esta obra temos a primeira tentativa de interpretação científica da História estadual. Valendo-se do evolucionismo, paradigma científico hegemônico na época, Freire oferecerá uma síntese da evolução de Sergipe. O livro tem como limites cronológicos 1575 e 1855: das primeiras incursões dos jesuítas até a transferência da capital de São Cristóvão para Aracaju.
 
O livro está ordenado em quatro partes. Na “Introdução”, F. Freire apresenta as balizas teóricas da sua obra após fazer uma síntese sobre os primitivos do Brasil, sua composição étnica, o meio natural sergipano. “Época da formação (1575-1696)” descreve a conquista de Sergipe, a implantação da máquina administrativa, a invasão holandesa e as primeiras atividades de exploração. Dando continuidade cronológica à obra em “Expansão Colonial”, o autor elenca os episódios (administrativos, sobretudo) ocorridos entre 1696-1822. Compõe esta parte a descrição de Sergipe na condição de Comarca da Bahia, a expulsão dos jesuítas e o fim da escravidão indígena, a ressonância da Revolução Pernambucana de 1817 e, finalmente, o conturbado processo de autonomização política de Sergipe da vizinha Província da Bahia. “Política Imperial (1822-1855)” volta-se para os eventos políticos da Província desde a instalação da junta governativa provisória até a transferência da capital (pelo presidente Inácio Barbosa, em 1855).
 
Em que pese a declarada intenção do autor de forjar uma obra nos moldes da ciência histórica evolucionista da sua época, o que ele termina por fazer é uma narrativa centrada nos governantes e seus feitos. História de Sergipe é, assim, uma crônica do poder enfatizando, quase sempre, as figuras dos administradores: capitães mores, ouvidores e presidentes de província formam o eixo condutor da narrativa de Freire. Aqui um pouco sobre a economia, acolá uma pitada sobre a educação, demografia e sociedade.

Fica evidente um hiato entre a teoria, soi disant, esposada pelo autor e a economia narrativa e explicativa adotada ao longo da obra. Embora Freire tenha escrito que a “raça” e o “meio” “são as duas forças que dirigem a civilização humana” (p. 53) ou, mais enfaticamente, que estes dois fatores “são a causalidade mais geral de todos os fenômenos históricos” (p. 31), ao explicar os sucessos da história de Sergipe o autor apela quase sempre para fatores como “paixões”, “patriotismo”, “ignorância”, “obscurantismo religioso”, etc. e, muito raramente, para “raça” e “meio”. Configura-se um inequívoco descompasso entre a teoria proposta e a prática explicativa efetivamente adotada. Esta longe aqui de Capistrano de Abreu que postulava escrever uma história sem citar Tiradentes. Obviamente o historiador cearense nada tinha de pessoal contra o inconfidente. O que ele queria era criticar uma historiografia voltada para os heróis, para os feitos dos grandes homens, descurando as forças movedoras da história: a raça e o meio (consonante com o determinismo mesológico e racial da época). Também longe está de Euclides da Cunha que, fiel ao determinismo, põe em Os Sertões o homem como títere da “raça” e do “meio”.

O rol das forças motrizes da História de Sergipe é, para F. Freire, bipolarizado. De um lado, forças positivas que incrementam a “civilização”, o “progresso” e do outro, forças negativas responsáveis pelo “atraso”, a “degeneração”, a “discórdia”. No primeiro lado tem-se o “patriotismo”, o “civismo”, a “instrução” e, retrocedendo a história, tem-se a “religião”, as “paixões pessoais e partidárias”, “ambições”, “ódio”, “inveja”. Do confronto entre estas forças resulta o processo, o devir histórico. É de se notar que todos estes “motores” são na obra atributos pessoais e não raciais ou decorrentes do meio. Ao longo da história colonial de Sergipe, segundo F. Freire, a religião representou o principal fator de “atraso” ao passo que na fase imperial as “paixões pessoais” e partidárias tomam este papel. A história de Sergipe é configurada assim como teatro de paixões imoderadas e conflitantes.

Outro percalço apresentado pelo livro é representado pelas excessivas transcrições no corpo da narrativa. Quase metade desta é constituída de longas transcrições integrais de documentos localizados pelo autor. Lamentando a cada passa a escassez documental para a feitura da sua história, Felisbelo Freire é levado a oferecer ao leitor os seus achados preciosos. A intenção é boa porém o local é inadequado por desequilibrar a obra. O autor poderia dar vazão ao seu desejo de fornecer “provas” colocando estas transcrições em forma de apêndice (como faz aliás com um corpus de 218 cartas sesmarias).

Problemática é ainda a presença do autor na condição de Juiz, reprovando ou aprovando o comportamento dos agentes históricos. Esta postura judicativa, marcada pelo viés do positivismo anticlerical, leva o historiador a transformar os religiosos em verdadeiros vilões da história sergipana. Não se trata de postular a neutralidade do escritor da história, mas no caso em foco, Felisbelo Freire cai na rede das “paixões” que tanto deplorou nos outros.

Estas notações críticas não têm o objetivo de denegrir ou negar o valor e importância da História de Sergipe. Esta obra é, sem dúvida, um marco na historiografia sergipana. Primeira tentativa de interpretação científica da história do estado, primeira visão de conjunto da sua trajetória, reunião valiosa de documentos, manancial de pistas de pesquisa.

Creio que uma boa forma de celebrar o centenário desta história-matriz é analisando-a criticamente.



* Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; e Mestre em Antropologia pela Universidade de Brasília; Graduado em História pela Universidade Federal de Sergipe; Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe - fjalves@infonet.com.br.

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