terça-feira, 14 de junho de 2011

‘Acorda, São João !’: Festejos Juninos em Sergipe no Século XIX

Artigo apresentado durante reunião de estudos do grupo Defensores do Patrimônio Cultural Sergipano no dia 12 de junho de 2011. Originalmente publicada em: Jornal da Cidade, n. 9.593, 23 de junho de 2004. Caderno B, p. 06.

Por Amâncio Cardoso dos Santos Neto *

“E as fogueiras do terreiro vomitavam grossas labaredas; (...);
e as girândolas, as bombas, as ronqueiras estrugiam aos – Viva S. João!”.

MORAES FILHO, Alexandre José de Melo (1843-1919). A véspera de S. João.
Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: 
Senado Federal, 2002. p. 103. (1ª edição c. 1895).


Os festejos juninos têm lugar sagrado no calendário popular. No entanto, a tradição do culto ao santo Batista tem um sentido tanto profano quanto religioso. Deste modo, a festa é regada não somente a novenas, procissões e missas; mas também a bebidas, comidas, músicas, danças, fogos e brinquedos. Além disso, as comemorações juninas fazem parte de nossas velhas usanças. É um legado trazido da Península Ibérica, onde o culto a São João é um dos mais antigos e populares (1).  Em 1583, no Brasil colônia, o jesuíta Fernão Cardim (1540 ?-1625) anota que ‘as fogueiras de São João’ são os festejos mais apreciados pelos indígenas cristianizados (2).  Passados os anos, conforme testemunhos do século XIX, os sergipanos continuavam cultuando o São João de forma intensa e variada. 

Em Aracaju, no ano de 1893, um jornal anunciou que a festa junina fora animada, pois a população armara fogueiras em penca, comera manauês e milho verde aos cachos; canjica aos alqueires e bebera vinhos em quantidade. Além de arrasta-pés e fogos de salão ‘para glorificar o Santo Batista’. (3)

Misturadas ao aspecto lúdico, solenidades religiosas afloravam da população que ornavam as paróquias, sobretudo as do interior. Em 1896, na cidade de Maruim, o povaréu rezou na Igreja Matriz as novenas de São João e no dia 24 celebrou missa solene. À tarde, ‘percorreu toda a cidade concorrida e animada procissão’. (4) Paralelo a isto, os maruinenses mantinham antigos costumes de acender fogueira em cada casa e fincar um mastro ‘em frente da porta’. Para colorir a festa, foguetes e busca-pés em abundância. À noite, na porta da Matriz, conforme um cronista de Maruim, ainda em 1896, um certo foguista alcunhado por ‘Zé Bonecra’ (assim grafado) foi objeto de galhofa da molecada. Suas girândolas (roda em que se reúnem foguetes que sobem e estouram simultaneamente) não subiam e a criançada então ‘distinguiu-o com bonita vaia’. (5)

Com a grande demanda por fogos de artifício, alguns comerciantes aproveitavam o período para diversificar suas vendas e aumentar seus proventos. Os reclamos (como se chamavam à época as publicidades em jornais) eram anunciados, algumas vezes, com singelos poemas de apelo à clientela: ‘Sem fogos não há São João/ Tomem nota do que aí fica,/ Os fogos são, com certeza,/ A canela da canjica’. Dizia a quadra do empório A Veneza de Aracaju, que estreou neste filão abrindo uma seção pirotécnica no ano de 1896. Ele oferecia aos festeiros uma variedade esfuziante de fogos nacionais, franceses e chineses. (6)


O mesmo ocorria na loja A Providencial situada na antiga rua da Cancela (atual General Siqueira) em Maruim, que também vendia fogos nacionais e estrangeiros ao lado de ‘fazendas, miudezas e molhados’. (7) Outros negociantes, mais especuladores, ofereciam ‘foguetes de assovio com pequeno defeito’ por preço inferior, mas expondo o usuário a graves acidentes. Este foi o caso do comerciante Gothardo de Araújo, estabelecido na cidade de Rosário do Catete, em 1897. (8)

No ano anterior, o São João de Maruim fora animado por fogos em abundância. Na véspera, as ruas do Assovio (atual Barão do Rio Branco) e Cancela (hoje General Siqueira) arderam por ‘horas de fogo cerrado’. No dia 24, as ruas estavam ‘vistosamente’ enfeitadas, sobressaindo as da Cancela e Cabula (atual Dr. Fausto Cardoso). Além da ornamentação, as ruas de Maruim ganharam iluminação e música. (9) A cidade era uma festa.

Entretanto, passada a folgança, o cotidiano na província sergipense voltava à rotina. Muitos festeiros retornavam à labuta diária ‘enfadados pelas vigílias e perdas de noites’; escreveu um articulista de Aracaju em 1879. (10) Porém, outros não voltavam ao trabalho, pois haviam sido feridos por queimaduras nas espetaculares guerras de busca-pé.   

Aliás, acidentes com fogos de artifício, como explosões, incêndios e queimaduras fazem parte de nossas festas de São João desde há muito. Eles são tão tradicionais quanto as comemorações.

Em 1896, foi notícia de primeira página do jornal O Progresso um incêndio na noite de 23 de junho, provocado pelo estouro de um busca-pé na porta da residência de Luiz Antônio de França, o Luiz de Simão Dias, fogueteiro em Maruim instalado na rua Aquidabã (atual Getúlio Vargas). Segundo a nota, as faíscas do foguete teriam passado por baixo da porta e atingido o chão ‘juncado de restos de pólvora’, alastrando-se subitamente um incêndio ‘em todo o fogo de artifício que estava preparado’. Eram 130 (cento e trinta) dúzias de foguetes do ar, centenas de bombas, latas e barris com pólvora e todo material de fabrico. O Luiz fogueteiro estava dormindo na hora do incidente. Sua esposa despertou-o, ainda acordada embalando o filho. Os três escaparam ‘milagrosamente sem a mais leve queimadura’. Muitos habitantes correram ao local para ajudar na extinção das labaredas. A polícia chegou em seguida. O articulista d’O Progresso finalizou com um misto de surpresa e indignação. Ele escreveu que não sabia ‘como se consente uma tenda de fogueteiro, no centro da cidade.’ (11) Sobre este assunto, até hoje, as autoridades competentes não nos deram uma resposta satisfatória.

Já em Aracaju, na segunda metade do século XIX, quando parte significativa da população habitava em casas de palha, os incêndios eram mais constantes. Em 1873, por exemplo, uma semana antes do dia de São João, dez casebres foram queimados por foguetes na localidade da Aroeira. O Jornal A Liberdade questionou o que seria ‘da pobreza que se abriga nas casas de palha’ se a Câmara municipal e a polícia continuassem a permitir ‘tão prejudicial divertimento’.  (12)

Nas décadas seguintes daquele século tentou-se refrear as guerras de fogos, mas as autoridades policiais pareciam ser impotentes diante da ‘loucura da população’. Um jornal aracajuano, em 1882, julgou como selvageria o divertimento dos que se regozijavam diante da confusão de foguetes, cujas chamas ardiam sobre casas e feridos. As reclamações dos atingidos ‘ameaçavam degenerar em desordem’; denunciava o periódico. (13)

No ano de 1893, ainda em Aracaju, noticiou-se que a força policial já havia entrado em atividade antes mesmo da noite junina, no intuito de ‘evitar o prejudicial folguedo de busca-pés e tiros de canhoto [espécie de pistola]’. Porém, alguns refratários ao cumprimento da ordem policial queriam ‘ostensivamente violá-la’, asseverou o testemunho. (14)

Dois dias depois, a mesma gazeta da capital registrou que policiais invadiram uma casa na rua de São Cristóvão, ‘afim de arrancar uma criança que estava soltando traques’. (15) Os excessos, segundo as fontes, partiam de ambos os lados: tanto de alguns foguistas quanto do poder de polícia.

No século XIX, a ordem vigente entre as elites dirigentes era a contenção das paixões, dos excessos do espírito. A saúde da sociedade estaria nos gestos morigerados dos indivíduos, na contenção, na disciplina e na obediência às leis, conforme idéia difundida por aquele estrato social. Com isto, se estabeleceriam as vias para a “civilização” nos moldes dos valores burgueses da Europa ocidental.

Contudo, a tradição parecia ter mais força que a repressão. Desrespeitavam-se até autoridades constituídas. Foi o caso de um Juiz de Maruim no atribulado São João de 1896. Ele foi perseguido por uma taquara que o fez manter-se numa posição ‘pouco decente até a diaba estourar’, ridicularizou um cronista local. (16)


As queimaduras com fogos eram tão recorrentes que em 1889, nas antevésperas do São João, um jornal de Propriá oferecia uma receita para as de 1º e 2º graus à base de compressas de vinagre, água, éter sulfúrico, geléia de groselhas ou mel ralo, e água com sal de cozinha em solução. (17) Nas festas juninas a alegria se misturava com o sofrimento e a dor.

Não obstante os riscos físicos, nas noites de São João também havia espaço para a pilhéria. A zombaria era temperada com a ironia. Geralmente eram rixas e reclamações entre vizinhos enviadas pelos jornais em forma de versos. Isto ocorreu em 1873, por exemplo, numa “publicação a pedido” intitulada “Resposta dos moradores da rua de Santo Amaro ao Canjica”. Eis as quadras:

1-‘Vinde, vinde meu Canjica
Com coragem e honradez
Que aqui vos esperamos
Com bom milho e manauês

2-Se quereis vir combater
Em a noite de São João,
Deve vir bem temperado,
Cosido n’um panelão.

3-Foguetes, traques e bombas
Estragam muito as panelas,
Ficaremos sem canjica
Se quebrarem todas elas.

4-Os moradores da rua
D’antiga Independência
Tem por glória nesses dias
Exercer grande influência.

5-Viva a noite de São João
Vivam todos os festeiros
Viva a canjica bem frita
Vivam todos paneleiros’.  (18)

Em nossas comemorações juninas permanecem alguns traços dos antigos festejos, tais como casamentos na roça, crendices, prendas, missas, procissões, danças, músicas e comidas. Quanto aos fogos, mastros e fogueiras, que eles continuem e sirvam para anunciar o nascimento do Batista por sua mãe, Santa Isabel, à Nossa Senhora, mãe de Jesus, como reza a lenda. E assim, oxalá todos estes santos protejam tanto os que fabricam foguetório quanto os que festejam nas noites faiscantes das guerras de busca-pés.

Diante do que foi visto, percebe-se que a tradição junina constitui, de forma arraigada, a cultura sergipana. Ela é um símbolo de nossa identidade entranhada na alma de nosso povo. Portanto, se faz necessário que a população e os órgãos públicos responsáveis pelas políticas culturais a mantenham, evitando sua extinção. Acorda, São João! Viva, São João!


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NOTAS:

* Mestre em História Social pela Universidade Estadual de Campinas; Graduado em História e Especialista em Geografia Agrária pela Universidade Federal de Sergipe; Professor do Instituto Federal de Sergipe - acneto@infonet.com.br.

(1) CASCUDO, Luís da Câmara (1898-1986). Verbete: São João. Dicionário do folclore brasileiro. 9. ed. São Paulo: Global, 2000. p. 298.

(2) CARDIM, Fernão. Narrativa Epistolar de uma viagem e missão jesuítica. Tratados da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: Edusp, 1980. p. 156.

(3) Gazetilha - São João. O Município. Aracaju, 23 de junho de 1893, ano 1, n. 31. p. 01. Todas as fontes deste artigo foram pesquisadas nos CD-ROM’s números 3, 4, 5 e 8 do Sistema Informatizado de Memória Histórica de Sergipe-SIMH, editados pela Secretaria de Estado da Cultura a partir de microfilmes da Biblioteca Nacional.

(4) Festa. O Progresso. Maruim, 28 de junho de 1896, ano 1, n. 40. p. 02.

(5) K. Listo. Chronica Semanal. O Progresso. Maruim, 28 de junho de 1896, ano 1, n. 40. p. 03.

(6) Annuncios. O Progresso. Maruim, 14 de junho de 1896, ano 1, n. 38. p. 04.

(7) Idem, ibidem.

(8) Annuncios – Foguetes de assovio. O Progresso. Maruim, 13 de junho de 1897, ano 2, n. 87. p. 03.

(9) O Progresso. Maruim, 28 de junho de 1896, ano 1, n. 40. p. 01.

(10) Gazetilha – Festa de S. João. Jornal de Sergipe. Aracaju, 25 de junho de 1879, ano XIV, n. 68. p. 03.

(11) Incêndio. O Progresso. Maruim, 28 de junho de 1896, ano 1, n. 40. p. 01.

(12) Gazetilha - Incêndio. A Liberdade. Aracaju, 21 de junho de 1873, ano 1, n. 17. p. 01.

(13) Selvageria. Sergipe Jornal. Aracaju, 28 de junho de 1882, ano 1, n. 94. p. 03.

(14) Gazetilha. O Município. Aracaju, 21 de junho de 1893, ano 1, n. 30. p. 01.

(15) Gazetilha – São João. O Município. Aracaju, 23 de junho de 1893, ano 1, n. 31. p. 01.

(16) K. Listo. Chronica Semanal. O Progresso. Maruim, 28 de junho de 1896, ano 1, n. 40. p. 03.

(17) Contra Queimaduras. São Francisco. Propriá, 20 de junho de 1889, ano 1, n. 18. p. 03.

(18) Jornal de Aracaju. 26 de junho de 1873, ano 4, n. 387. p. 04.